Esse texto é uma tentativa muito rudimentar de propor um diálogo sobre os últimos acontecimentos relacionados a estes temas. Logo, por se tratar de uma proposta de diálogo, ele não é um texto acabado. Toda e qualquer linha do que escrevemos aqui é passível de concertações, indagações, problematizações e toda a forma de intervenção que aqueles que se derem ao trabalho de ler quiserem fazer. E vai dar trabalho porque o texto é longo.
Começamos discutindo o que compreendemos do programa Mais Médicos. Primeiramente é necessário salientar que essa iniciativa do governo federal não foi discutida com a sociedade civil. Ele chegou assim, pronto. Com uma série de perspectivas para melhorar a saúde pública no país, que vão desde (segundo as promessas do programa) investimento em infraestrutura nos hospitais e postos de saúde até aumento de vagas nas faculdades de medicina. Cabe destacar, que esse programa é uma medida do governo em resposta aos levantes de junho e julho, onde a população saiu às ruas por diversas reivindicações, entre elas, melhorias na saúde.
A primeira das variadas estratégias que o programa apresenta é remanejar médicos para os municípios em que há escassez dos mesmos. Precisamos, nesse ponto, parar e refletir sobre algumas questões. É fato que existem localidades que se quer possuem médicos. É uma realidade para muitos brasileiros e brasileiras não conhecer um médico. Não conhecer nenhum profissional da área da saúde. E porque isso acontece? É em função dos médicos que não querem trabalhar no sertão? Ou é motivado pelas péssimas condições de trabalho que não permitem que os trabalhadores da saúde desempenhem suas profissões? Ou ainda, por questões mais intricadas?
Para nós o problema começa no modelo de educação. A formação profissional de médicos visa (como tudo num sistema capitalista) lucro. A medicina é a profissão mais sonhada nas famílias brasileiras não porque ela é bonita, não porque o filho ou a filha vão salvar vidas. É valorizada porque dá dinheiro. Dinheiro e status. Salvar vidas é um pensamento secundário, ele tá ali, do lado, mas primeiro queremos dinheiro, queremos conforto, queremos status. Queremos porque o capital nos impõe isso, nos impõe consumir, consumir muito e para tanto é imprescindível ter dinheiro. Nas faculdades de medicina o currículo não da conta da saúde da mulher, população negra, muito menos da população indígena. Se a intenção é “moralizar” essa categoria, nem de longe essa ação tem efeito! A moralização de uma formação mais humanitária passa por uma revisão no currículo do curso, e na construção de uma atuação profissional mais ligada as demandas do povo.
O governo tentou implementar uma medida de aumento no tempo de graduação que não iria solucionar a falta de humanização no atendimento, não iria porque não há se quer incentivo para que se aprimore o atendimento básico. Médicos receitam fórmulas farmacêuticas, ignoram os saberes tradicionais(porque assim aprendem nas universidades) e não tem preparo para lidar com pessoas. Se preparam para tratar doenças e não gente. E o que tudo isso tem a ver com o programa mais médicos? Muito! É por esses fatores também que os recém formados não querem ir trabalhar no interior do interior do Brasil, tanto é assim que a primeira etapa do ciclo de aumento de médicos nas localidades mais longínquas do país não foi atendido pelos médicos brasileiros.
A formação elitista e visando o mercado se dá de forma contínua e não tem perspectivas de término. Os médicos filhos das classes dominantes irão continuar atendendo seus nichos, e recebendo muito bem por uma consulta particular. Afinal, as vagas ocupadas por médicos estrangeiros não são aquelas em que não há interesse dos médicos brasileiros? Por que o programa irá solucionar a falta de médicos em alguns locais, mas não irá solucionar a falta de estrutura da saúde pública? Porque em nenhum momento foi falado em aumento do orçamento destinado à saúde. O SUS irá continuar com baixo investimento em atenção primária, sem atendimento de médicos especialistas (como neurologista, ortopedista, psiquiatra), sem leitos em hospitais, com longas filas e muito descaso. Esse atendimento que será dado pelo médico estrangeiro no interior, em alguma medida, será encaminhado aos grandes centros, já que toda a boa vontade do médico estrangeiro não supre a falta de estrutura para exames e procedimentos de média e alta complexidade.
Contudo, nós não caímos no discurso fácil de apontar para os profissionais da saúde e dizer “vocês não querem atender os pobres, os estrangeiros querem”. Não é simples assim. É necessário ter condições mínimas de trabalho para trabalhar, são mais de dez anos de governo petista e estas condições estão longe de serem atendidas. As filas nos prontos-socorros são infindáveis, as UPAS(que já foram vendidas como a solução do problema da saúde no país) não são suficientemente equipadas e estão desconectadas da rede de atendimento mais complexo.
A “moralização” da medicina no Brasil, passa por investimentos no SUS, atacando os lucros dos planos de saúde e hospitais privados, que são os que lucram verdadeiramente com a precarização da saúde. O mercado de medicamentos também deve ser repensado, a indústria farmacêutica é uma das que mais lucra no mundo. Todos esses interesses não foram atacados com o Programa Mais Médicos. Porque são interesses multinacionais e com grande representação na câmara de deputados e no senado nacional. Ao contrário, o governo está privatizando de maneira sorrateira os hospitais universitários, com a implantação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, e não há nenhuma notícia na mídia e nem a metade da comoção popular(e também não há protestos ou vaias por parte dos médicos brasileiros para a EBSERH).. A solução da presidente Dilma não foi atacar os grandes grupos da saúde, e sim, a classe trabalhadora.
Os trabalhadores no setor da saúde tem que perceber que não adianta uma categoria profissional lutar contra outra. Os grandes vilões são os governantes, que não investem o previsto constitucionalmente no SUS. A atenção básica do SUS, que está sendo usada como grande bandeira para defesa do programa, não é feita somente pelo médico. Acreditar que o problema da saúde no interior se resolve com mais médicos, é compartilhar da ideia que a saúde é feita somente pela medicina. Sabemos que no interior faltam médicos, mas faltam outros profissionais também. Faltam enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, nutricionitas, fisioterapeutas (…), categorias muitos mais engajadas no atendimento básico e comunitário. Mas porquê o programa não é Mais Enfermeiros? Porque uma ação como essa não teria a visibilidade e o apelo popular tão caros ao governo Dilma. Após os levantes de junho e julho, a popularidade da presidente caiu alguns pontos. Era necessário uma resposta ao povo na rua, principalmente em véspera de eleições presidenciais.
Dado tudo isso talvez aqueles que nos leem digam: “mas ora, os médicos estrangeiros vieram para o Brasil enfrentar essas condições, estão de bom grado trabalhando nos sertões, nos lugares mais distantes onde não há estrutura, e os riquinhos no Brasil não querem atender gente pobre?!” Para responder essa indagação, devemos lembrar de onde estes médicos vem. A maioria é oriunda de países em profunda crise econômica. A Espanha hoje é um país em que a juventude não tem nenhuma perspectiva de emprego, a Argentina está atolada e colapsando há anos. Na grande maioria, os médicos que aqui chegam estão vivendo em seus países tempos de recessão econômica. E não, o Brasil não vive o melhor momento econômico do mundo, mas certamente a crise econômica por aqui ainda não atingiu os patamares que estas nações.
Os médicos cubanos, que possuem uma formação diferenciada, mais humanitária, estão sendo utilizados como grande propaganda do governo. Afinal, não se fala em médicos espanhóis, mas se fala muito em médicos cubanos. É certo que a grande mídia utiliza a vinda dos médicos cubanos, para um ataque conservador e fascista. Mas, é certo também, que a boa reputação da saúde cubana já está enraizada de alguma forma no imaginário popular, principalmente em quem é da área da saúde. Essa foi a grande sacada do governo, a utilização dos médicos cubanos. Porque quem trabalha na saúde se viu tentado a atacar anos de status da medicina, e defender o modelo de saúde cubano. E quem possui uma ideia mais crítica, mais de esquerda, foi tentado a defender com todas as forças o modelo de educação e formação desse país. Somado a esse contexto, a reação da categoria médica que aparece nos veículos de comunicação é recheada de conservadorismo e preconceitos, ampliando a vala entre os “humanitários”, quase voluntários, e os “mercantilizadores”.
Estes conservadorismos e estes preconceitos são expressões explícitas do racismo e da xenofobia. Falar de racismo no Brasil sempre foi difícil. O discurso, muito bem construído e altamente perverso, da democracia racial faz com que abordar a problemática do preconceito racial seja uma tarefa árdua, porém altamente necessária. Convidamos nossos/as leitores/as para uma reflexão prática. Os médicos estrangeiros chegaram, desembarcaram em solo brasileiro oriundos dos mais diversos países. Os protestos, dos médicos e médicas brasileiros(em especial dos estudantes de medicina) se deram contra os médicos cubanos. Não vimos protestos contra os médicos argentinos, contra os médicos espanhóis, aliás, se quer vimos manifestações contrárias aos médicos estrangeiros em geral. Os que foram vaiados, os que foram agredidos são aqueles de origem cubana. Cuba é um país com uma porcentagem significativa de negros, estes, pasmem caros leitores, se formam em medicina! E se tornam médicos! Aqui, nas terras tupiniquins, da democracia racial e da miscigenação, apenas 2% dos graduandos de medicina são negros. Quantas vezes você foi atendido por um médico ou por uma médica negra? Quantas na sua vida? Isso é reflexo do que?
A já emblemática foto do médico Juan Delgado, cubano, negro, vaiado por estudantes de medicina brancas no alto dos seus jalecos brancos simboliza o quão cruel é o racismo e a xenofobia no Brasil. Aqui os estrangeiros são bem vindos, desde que não sejam negros! Vaiamos os afro-cubanos e criamos as mais variadas teorias para impedir o acesso dos haitianos(outro país marcadamente negro) ao solo brasileiro, por exemplo, só para ilustrar o que dizemos em um contexto diferenciado. Dizem que os cubanos são escravos e os próprios cubanos ficam sem entender o porque disso. Nós, aqui, entendemos. Aqueles que foram educados vendo nas páginas dos livros de história negros como escravos, não conseguem compreender negros enquanto médicos.
Que passemos, logo, a lutar por saúde igualitária, pela efetivação do SUS, contra a privatização dos hospitais públicos. Que passemos, de uma vez por todas, a refletir sobre o nosso passado escravocrata, para compreender nosso presente racista. Sem essas reflexões é impossível construir um futuro onde sejamos de fato livres de toda e qualquer forma de opressão e onde não seremos mortos nas portas dos hospitais a espera de atendimento.
Roberta e Winnie são militantes do PSOL , ambas com fenótipo de médicas cubanas.
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